domingo, 29 de agosto de 2010

Vicky Cristina Barcelona

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“Os relacionamentos não realizados são sempre mais românticos”. Como lidar com a casualidade sentimental? O que desperta o desejo sexual? Woody Allen propõe um estimulante universo sobre a irracionalidade, inconstância e buscas no âmbito de relacionamentos amorosos. Vicky Cristina Barcelona é uma deliciosa ode erótica inteligente, um singelo retrato existencial da passionalidade sexual. É um filme que pauta as intensidades e fragilidades de relacionamentos inconstantes da contemporaneidade. O trabalho de Allen encontra-se aqui mais articulado na ousadia elegante, através do cenário de Barcelona onde centraliza sua quente história. O filme concretiza a intenção de abordar um pleno discurso de amor e sexo, um enredo que pauta as nuances dos sentimentos e descobertas da libido humana. Todas as neuroses que caracterizam a febre do estilo de Allen são presentes, porém o lado mais feminino desenvolve-se com requinte de malícia e, através, das relações humanas expressas dos personagens de seu universo é que se pode compreender como os sentidos são verbalizados - sensos de desejo, prazer e sexualidade à flor da pele. Mais que um exercício de sexo, é o comprometimento de expressar o humano como ele é: integralmente frágil, confuso e deliberadamente inconstante. E Allen prova que até os mais descrentes podem se permitir a esses jogos de sedução e sentimentos conflituosos. Qual sentido da fidelidade? A felicidade está interligada aos anseios do sexo? Só é feliz quem arde de desejo? Um retrato que expõe a liberdade amorosa e também sexual, das escolhas sem repressões e dos sentimentos que motivam o ser humano. Eis um filme que instiga com uma premissa bastante banal, mas sedutora por tratar sem pudor da bigamia e das contradições do desejo irrefreável.

Eis o universo de duas americanas, Vicky (Rebecca Hall) e Cristina (Scarlett Johansson). Ambas são amigas que compartilham um elo de sintonia e fraternidade, ainda que distintas no lado psicológico - unidas, porém como água e vinho por terem opostas visões do amor. As duas viajam de férias à cidade de Barcelona, ansiosas por novos ares que concebam também novos rumos às vidas. Vicky é a típica moralista racional que condiciona sua vida com certo metodismo lógico: procura achar explicação para tudo, não se permite aos anseios seus e julga os alheios; cética a tudo, expõe seu lado questionador e uma sinceridade dinâmica, ainda que preserve seu conservadorismo. Como fugir do que sente? Nota-se que este papel de expressar uma moralidade é, na verdade, uma fuga. Ela nada mais é que uma mulher temerosa, aflita pelo que sente, fragilizada pelas escolhas. Já Cristina se afasta dos estigmas da omissão da personalidade da amiga. É instintiva por ser emotiva, exibe um idealismo romântico que concretiza seus anseios de sonhadora; impulsiva e extremamente seduzível - flerta para encontrar a si própria? Sabe o que não quer, mas e o que quer? Seu senso emotivo demonstra seu lado destemido. O universo dessas duas garotas é sensivelmente pontuado com uma narração em off que direciona, revela e determina as ações e motivações destas personagens, de maneira que toda a verve psicológica seja incitada. Nota-se nessas duas uma busca por novas culturas, oportunidades e ares existenciais de um lugar inovador - seria a forma de complementar uma vida pautada no tédio? As amigas buscam diversão, ingressam em Barcelona para acréscimos de conhecimento. Porém, em uma exposição de pintura, ambas conhecem o pintor Juan Antonio (Javier Bardem) - o destino poderia provocar com maior sensualidade? Este homem provoca nas duas um tesão evidente, arrebatador, imediatista. Como controlar os impulsos que fervem o corpo? O ser humano pode refrear o tesão que acelera a irracionalidade? Juan Antonio é a representação da sedução masculina, o pintor espanhol que provoca a turbulência feminina - um típico homem sexualizado, boêmio e másculo caliente que induz o flerte sexual. E ele investe, sem rodeios: flerta, atiça e convida as duas amigas a compartilhar com ele um final de semana à Oviedo. O convite expressa estadia, passeios, boa companhia, bebidas e bastante sexo regado a ménage à trois.

Nota-se em Juan uma sinceridade exímia, ele acredita no seu poder de persuasão a ponto de não mascarar suas segundas intenções. E ele seduz as duas com este súbito convite. Ele funciona como o catalisador da trama: é o senso da sensualidade, da provocação, estimula todos ao redor com sua sede insaciável de sexo. É o elemento-chave que determina virilidade à trama, conduz com masculinidade a percepção sexual. Um fio condutor de puro charme? Porém, Vicky declara-se comprometida com seu noivo Doug (Chris Messina) - com quem mantém um contato superficial por telefone. Como fugir das investidas? Ela exibe seu discurso de mulher fiel, adepta da monogamia, mostra-se contra a esse painel comportamental de luxúria presente em Juan. Ainda que ela sinta-se atentada ao prazer carnal, não aceita trair o seu noivo e nem a si mesma com uma promessa de sexo ocasional. Teria ela satisfação sexual a ponto de negar uma nova relação? Já Cristina representa a feminilidade contemporânea adepta dos flertes casuais, do sexo descompromissado, desprendida de compromisso rígido. Uma mulher passional seria mais liberal aos jogos da sexualidade? Qual sentido do rigor? Ela é a fêmea que corre riscos nos jogos de sedução, permite-se as conquistas liberais de relações que nascem nas intenções do sexo livre. Contudo, Juan e Cristina se intensificam num invólucro de sentimento e paixão efervescente de sexo a dois. Ambos percebem semelhanças, unidos pela boa química romântica. E os dois decidem morar juntos. É então que Woody Allen apimenta seu universo de relações humanas: a ex-mulher de Juan tenta se suicidar, então ele a insere dentro de sua casa sob seus cuidados. Eis que María Elena (Penélope Cruz) surge como uma mulher temperamental, agressiva e impulsiva. Ela se interpõe na relação de todos, mostra-se dominadora compulsória.

O roteiro de Allen acentua sua ode de sensualidade intimista ao colocar o envolvimento de Juan com as duas mulheres: Cristina e María Elena quebram os próprios paradigmas relacionais amorosos. Misturam-se como uma única mulher que representa os anseios de carne, alma e intelecto de Juan. É então que, através da profundidade do roteiro, que as duas envolvem-se numa teia conjugal de plenos interesses e verdades compartilhadas de desejo e sexo. Cristina torna-se o elemento de harmonia na relação destrutiva de Juan e María Elena. Então, acostuma-se em dividir seu homem com a outra mulher - e, inesperadamente, nasce também um desejo nela em experimentar um novo sexo com esta mulher. E ela não rotula sua relação, apenas crê na busca pela satisfação, nos acontecimentos que a vida destina. Ela é a instabilidade concreta que viabiliza um relacionamento a três, traz harmonia à instabilidade do casal espanhol Juan e María Elena. Quase um ponto neutro, ameno, de equilíbrio - e, assim, os três funcionam na febre da paixão. E Allen articula seu discurso provocativo ponderando reflexões - até que ponto um amor se sustenta dessa forma? Existe, de fato, sentimento a três? A personagem de Cristina abstém-se de julgamentos, vive o momento. Contudo, os conflitos nascem. E Vicky fomenta suas dúvidas enquanto vive um casamento de aparências.

O filme investe nas imagens banhadas de cores quentes - retratando uma Barcelona efervescente, amorosa, cidade de prazeres em sensações ensolaradas que pulsa nos pontos turísticos (bela fotografia de Javier Aguirresarobe). A narrativa é apenas um elemento pontuador sequencial, conceitualizador. Através disto, as dúvidas e os sentimentos dos personagens são expostos, um recurso quase literário. As atuações de Hall, Johansson e Bardem são excepcionais - mas, é Penélope Cruz que reina com maestria da sensualidade: sua Maria Elena é temperamental, inconstante e transtornada. Ela entra em cena e tudo tende a pegar fogo - de palavrões, crises, gritos, choros e intempestividade a beijos lésbicos, olhares e gestos delicados. É o misto da sedutora com a neurótica? A luxúria ganha ar de requinte? Só um amor não realizado pode ser romântico? O que consiste normalidade num relacionamento a dois...a três? Quais regras? Woody Allen propõe verossimilhança nas situações onde a câmera apenas percorre os movimentos dos atores, repletos de diálogos naturais e dinamismo-vivo. É como observar um simples cotidiano sobre determinadas pessoas, cada intimidade ali exposta. Há humor acentuado e contexto inteligente, característico do estilo Allen. A saborosa música-tema, "Barcelona", de Giulia e Los Tellarini, caracteriza a atmosfera do filme, o tempo todo. É uma abordagem sobre o amor, as relações do puritanismo e materialismo contrapondo-se. Poético conto delicioso cinematográfico.

Fonte: http://apimentario.blogspot.com/2010/08/tesoes-amorosos.html

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